Ela
só ia naquele horário as quintas e sextas-feiras. Por isso o envelope com a
foto dentro tinha meu endereço. Talvez fosse colocá-lo no correio. Ela era
morena clara e tinha os olhos verdes, sua boca era carnuda e muito gostosa de
beijar. Eram sete horas da manhã.
Eu
estava em pé e o trem sacolejava muito. Tinha um pouco de dificuldade para
recordar a apostila, pois teria uma prova naquele dia. Ela sentada no banco do
corredor com a cabeça recostada no meu ventre. Mostrava a boca aberta e
vermelha de batom. Ressonava, pois devia estar cansada.
O
trem parou por falta de energia, lá fora o dia era frio e a neblina densa.
Havíamos saído a pouco da estação de Jundiapéba com destino a faculdade de Mogi
das Cruzes.
Um
estrondo! Meu corpo voou como uma folha de papel. Um impacto tão forte que
nosso último vagão levantou voo. Senti uma dor tão forte que não sabia onde
doía meu corpo. Abri os olhos estava caído no chão e vi ainda colada a mim,
minha amada. Seus olhos estavam saltados fora do lugar. Sua boca golfava sangue
misturado ao batom. Era satânica a cena de horror, gemidos gritos de pavor. Um
gemido muito perto de mim chamava pela mãe. Ao longe um burburinho de vozes
apavoradas gritando!
Tentei-me
levantar para dar algum socorro a minha amada, não senti o braço. Não consegui
move-lo. Pensei estar no inferno. E estava!
Foi
tão terrível o impacto de um trem diesel batendo na traseira do nosso
eléctrico. Por algum tempo acho que perdi os sentidos, depois ouvi vozes.
—
Tem um vivo aqui?
Percebi
que falavam de mim. Não sei como fui carregado, meu corpo doía todo. Ainda tive
tempo de olhar o rosto da minha amada jogado no chão de ferro. Só não vi seu
corpo, parece que havia sumido. Meu corpo deitado balançava em algo móvel. Um
raio de sol ofuscava-me os olhos. Ainda lembro, fui colocado numa ambulância.
Depois dormi.
É
assim que me lembro daquele fatídico dia.
Hoje
estou aqui parado na estação de Jundiapéba. Fazem trinta e dois anos que perdi
Dalva. A minha amada estrela dos cabelos pretos e lisos. Era linda com sua
franja na testa. Um rosto meigo, um sorriso alvo e lindo. Minha morena cheia de
vida. O meu amor. Faço hoje cinquenta e dois anos.
Dói
muito em mim essa peça que o destino escreveu para minha vida. Foram anos de
recuperação e hoje duas muletas fazem parte do meu corpo. Sem elas não ando.
Voltei
para este lugar hoje para recordar o acidente. Estudava direito na faculdade de
Mogi das Cruzes. Nosso vagão era o último. O vagão dos estudantes. Perdi muitos
amigos e boa parte da minha vida. Perdi o sono por muitas noites ao sonhar com
os pesadelos da desgraça acontecida.
Voltei
para recordar Dalva. Recebi um envelope escrito a trinta anos atrás por ela. Foi
encontrado protegido dentro de um caderno com a matéria de física. No mesmo
local da tragédia, por um trabalhador de bom coração que fazia manutenção nos
trilhos. Este ser humano leal com a vida me entregou o caderno roto e
apodrecendo. Dentro dele o envelope com o meu endereço. Dentro do envelope uma
foto em branco e preto de Dalva, com o cabelo de franja e seu sorriso de anjo.
Atrás da foto a dedicatória dizia.
Ao
meu grande amor.
Estou
me dando a ti neste seu aniversário
Dalva
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