18/11/2020

OITO DE JUNHO MEU PRESENTE DE ANIVERSÁRIO

 

 

Ela só ia naquele horário as quintas e sextas-feiras. Por isso o envelope com a foto dentro tinha meu endereço. Talvez fosse colocá-lo no correio. Ela era morena clara e tinha os olhos verdes, sua boca era carnuda e muito gostosa de beijar. Eram sete horas da manhã.

Eu estava em pé e o trem sacolejava muito. Tinha um pouco de dificuldade para recordar a apostila, pois teria uma prova naquele dia. Ela sentada no banco do corredor com a cabeça recostada no meu ventre. Mostrava a boca aberta e vermelha de batom. Ressonava, pois devia estar cansada.

O trem parou por falta de energia, lá fora o dia era frio e a neblina densa. Havíamos saído a pouco da estação de Jundiapéba com destino a faculdade de Mogi das Cruzes.

Um estrondo! Meu corpo voou como uma folha de papel. Um impacto tão forte que nosso último vagão levantou voo. Senti uma dor tão forte que não sabia onde doía meu corpo. Abri os olhos estava caído no chão e vi ainda colada a mim, minha amada. Seus olhos estavam saltados fora do lugar. Sua boca golfava sangue misturado ao batom. Era satânica a cena de horror, gemidos gritos de pavor. Um gemido muito perto de mim chamava pela mãe. Ao longe um burburinho de vozes apavoradas gritando!

Tentei-me levantar para dar algum socorro a minha amada, não senti o braço. Não consegui move-lo. Pensei estar no inferno. E estava!

Foi tão terrível o impacto de um trem diesel batendo na traseira do nosso eléctrico. Por algum tempo acho que perdi os sentidos, depois ouvi vozes.

— Tem um vivo aqui?

Percebi que falavam de mim. Não sei como fui carregado, meu corpo doía todo. Ainda tive tempo de olhar o rosto da minha amada jogado no chão de ferro. Só não vi seu corpo, parece que havia sumido. Meu corpo deitado balançava em algo móvel. Um raio de sol ofuscava-me os olhos. Ainda lembro, fui colocado numa ambulância. Depois dormi.

É assim que me lembro daquele fatídico dia.

Hoje estou aqui parado na estação de Jundiapéba. Fazem trinta e dois anos que perdi Dalva. A minha amada estrela dos cabelos pretos e lisos. Era linda com sua franja na testa. Um rosto meigo, um sorriso alvo e lindo. Minha morena cheia de vida. O meu amor. Faço hoje cinquenta e dois anos.

Dói muito em mim essa peça que o destino escreveu para minha vida. Foram anos de recuperação e hoje duas muletas fazem parte do meu corpo. Sem elas não ando.

Voltei para este lugar hoje para recordar o acidente. Estudava direito na faculdade de Mogi das Cruzes. Nosso vagão era o último. O vagão dos estudantes. Perdi muitos amigos e boa parte da minha vida. Perdi o sono por muitas noites ao sonhar com os pesadelos da desgraça acontecida.

Voltei para recordar Dalva. Recebi um envelope escrito a trinta anos atrás por ela. Foi encontrado protegido dentro de um caderno com a matéria de física. No mesmo local da tragédia, por um trabalhador de bom coração que fazia manutenção nos trilhos. Este ser humano leal com a vida me entregou o caderno roto e apodrecendo. Dentro dele o envelope com o meu endereço. Dentro do envelope uma foto em branco e preto de Dalva, com o cabelo de franja e seu sorriso de anjo. Atrás da foto a dedicatória dizia.

Ao meu grande amor.

Estou me dando a ti neste seu aniversário

                                     Dalva

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