28/06/2020

ELEONOR

      Lá na vila do Sem Fim. Morava Eleonor, uma menina negra que era chamada de maluca pela família e vizinhança. Calada com os olhos parados e sempre com o dedo na boca. Seus cabelos carapinhos estavam sempre em pé. Eu chamava de penteado assustado.

      Aqueles olhos eu me lembro desde menino. Pareciam sonhar num mundo distante, com anjos e Papai Noel. Parecia estar sempre vendo Deus. Sonhava acordada.

      Sua casa era um misto de tijolo de barro e madeiras. O telhado era de sapé. No quintal tinha um fogão a lenha que fumeava o dia todo. Foi tudo construído pelo avô da família. O velho Mário do chapéu de palha amarrotado.
Moravam muitas pessoas naquela casa e tinham várias crianças. Volta e meia um morria, diziam que era de pneumonia.

      Às vezes eu via Eleonor brincar de roda com outras meninas. Porém ela não cantava, não sorria e também não ia ao grupo escolar como todas as crianças. Era a maluquinha da casa, da rua e do bairro.

      O tempo passou, ali eu cresci e por conta do falecimento do meu pai, já na minha juventude nos mudamos. Nunca esqueci a vila do Sem Fim, com suas ladeiras de terra e socadas de pedra. Nunca esqueci o nome daqueles moradores, cada um feliz ao seu modo.

      Um dia já velho andando pelo calçadão da vila da Penha me deparei com uma velha negra, com uma caneta e um caderno roto fazendo anotações, estava em pé encostada em um paredão caiado de amarelo. Seus cabelos brancos e suas vestimentas pretas de trapos, contrastavam ao amarelo. Ao seu lado sacolas com roupas velhas e bugigangas.

      Seu corpo era meio arqueado e balbuciava palavras enquanto escrevia. Passei por ela e fui em direção da loja de laticínios. Na volta há vi sentada no chão e recostada na sombreada do paredão,

      Ai sim vi aqueles olhos parados e o penteado assustado de Eleonor. Não me contive! Vontade de falar com ela não me faltou, porém pensei.:- Será que ela vai lembrar de mim.

Teimoso acendi um cigarro e parei a um metro e meio dela. Escutei as suas balbucies.

--- Sí eu tinha um dinheiro na minha mão! Compava uma zeladera pa num azeda a mamadera du Pretinho. Se eu tinha istudado e formado dotora eu ia sarva tia Zélia da catapora i da pimononia. Ia curá o zóio do meu irmão feinho Arthur. Eu ia opera pra ele num ficá cego. Ô Deus! Mai u Sinhô levo tudo imbora! Me dexo só.

      Chorei ao ouvir isso! Todas as pessoas que ela falou o nome eu as conheci quando menino. Puxei do bolso da calça algum dinheiro e estendi a mão na direção de Eleonor para que ela pegasse. Fez uma cara feia e bicuda e foi me dizendo com a boca sem dentes.

--- Num carece não! Eu já armocei! E vê si u ce para com o cigarro! Teu pai morreu por isso.

25/06/2020

CONVERSANDO COM MINHA ALMA

Em qualquer canto, lugar, tempo ou hora, me pego assistindo aos meus sonhos. Vejo meu passado, meus entes queridos (ou não...), minhas lembranças, mágoas, alegrias e tristezas, paisagens lindas! Minha alma voa comigo.

Ah, minha alma, minha Fênix! Quando me pego sonhando com as histórias que me contas, misturo tudo num mundo que só existe em mim. Lugares onde passei e outros em que nunca passarei, mas que me descreves como é... Fica tão real e gravado dentro de mim, que parece que já estive lá!
Quando tu falas, meu corpo físico, meu eu e meu ego embalam emoções no momento em que escrevo. E se minhas lágrimas não aplaudirem, é porque não senti a escrita.

 Lágrimas! Um santo remédio derramá-las. Fazem-me saber que estou vivo e sentindo meu mundo complexo. Sorrir com a alegria e chorar pela saudade. Chorar! Cachoeiras de águas salgadas brotam do mais profundo do meu ser, me provocam uma grande emoção por estar vivo, poder sonhar e escrever o meu teatro. Novelas com desfechos doídos, que meus personagens ensaiam: a vida, a emoção, o passado, as dores, as alegrias, entremeados nas linhas do papel, tendo como personagem principal a minha alma!

Eu e minha alma nos encontramos realmente para contar histórias no nosso lugar preferido, no nosso rio das almas. Sempre será este o lugar onde me preparo para a partida. Quero que seja aqui o capítulo final desta viagem
Penso que tive uma boa vida nesta passagem e, enquanto for possível, vou colocando meus sonhos no papel.

22/06/2020

Decimo segundo capitulo do meu livro”OS DOIS AMORES DE CARLINHOS”


A CONVERSA DIFÍCIL COM SEU CAETANO

Seu Caetano já notara por aqueles dias o filho calado e achou que estava na hora do menino partir, para novos horizontes. Chamando-o para uma conversa.
— Filho chegou a hora de trabalhar e estudar ao mesmo tempo. Eu com a sua idade já trabalhava, portanto acho que chegou a tua hora! Na semana que vem vamos preparar a tua identidade e a carteira profissional.
— Você vai se sentir melhor, o tempo vai passar mais rápido. Você vai conhecer outras meninas da sua idade. Porque tenho medo filho, dessa sua paixão pela sua namorada. Isso ainda pode me dar uma dor de cabeça muito grande.
— Desculpa pai! Mas é difícil evitar esse amor!
— Eu sei disso filho! Já fui menino como você! E quando isso acontece todo pai, tem obrigação de conversar com o filho e colocar lhe um cabresto se necessário. Sou muito novo para ser avô e você ainda não tem formação para ser pai. Por isso não estrague nossas vidas e nem a da tua namorada. Estou lhe dizendo isso com a experiência de um homem. Certo dia eu percebi como essa menina olha para você e os olhos dela não conseguem mentir os desejos guardados no peito. Portanto é a minha hora de tomar as providências e cumprir a minha parte de pai.
— Me dá um abraço e pensa no que acabei de lhe dizer.
Carlinhos abraçou seu pai e por dentro sorriu. Como era gostoso abraçar o pai. Aquele cheiro de pai amigo! Há! Se a sua loirinha estivesse ali naquele momento, para ele abraçá-la junto com seu pai.
Passaram-se alguns dias e os documentos estavam prontos, enfrentaram várias filas e burocracias da época. Carteira profissional, um documento que tanto orgulhava o trabalhador e o não menos orgulhoso Carlinhos o exibia aos meninos da rua. Era como um gibi, todos folhearam o documento com um monte de páginas brancas. Anotações de férias, licenças medicas e aumento de salario. A molecada pedia explicações de como fazer, para tirar os documentos e o professor Carlinhos, explicava com orgulho.
Agora levantava às cinco da manhã, pegava o ônibus para a admissão. Entrava as sete no colégio Rui Barbosa e às treze horas entrava no trabalho.
Os dias se tornaram cheios e corridos. Não dava muito tempo para pensar em Esmeralda, então todas as noites guardava a amada nas suas lembranças. Os Estúdios Debaixo das Cobertas, por cansaço e falta de da atriz principal encerraram as apresentações noturnas. Só ficaram as folgas do sábado e domingo, mas nada mais tinha graça, até as brincadeiras da rua e a bola! Linda e gorducha, tudo começou a ficar no esquecimento. Para piorar a coisa, o chefe, e amigo Luís estava de mudança marcada. Assim se aproximava o final da infância. A feliz história do cantinho florido de um menino, que como poucos, viveu dentro de um conto de fadas, com todos os encantos e essências que a vida lhe deu.
Só aguardava agora a volta da amada para lhe mostrar os sapatos pretos Vulcabrás e as calças compridas, azul-marinho que usava, para o colégio e trabalho. Agora ele se sentia um homem-feito. E se espelhava no pai. Com um andar altivo e elegante, era um rapaz agora.
Uma noite chegando do trabalho soube por Adélia que a família da amada havia voltado de Maringá e antes que pudesse dar seus ataques de felicidade gritar ou dançar. Chorou! A dourada não veio. A doença da avó lhe comia o corpo cansado e não restava mais esperança de vida para aquela senhora! A loirinha ficara para dar conforto ao avô e ajudar nos afazeres da casa.
Sentados no portão da casa de Adélia eles conversavam e Carlinhos remoía a tristeza que se abatera sobre seu corpo.
Um balão todo colorido aparece no céu e explodindo vários fogos de artificio a sua volta.
— Olha Carlinhos! Que lindo. Diz Adélia!
Carlinhos não olha, não vê nada, não escuta nada. Com lágrimas nos olhos se despede da amiga, que se emociona e lhe diz.
— Carlinhos! Se eu pudesse seria a tua dourada, só para não te ver triste desse jeito. Ele agradeceu à amiga e subiu a ladeira a caminho de casa. Chegando ao portão sentou de no degrau da entrada e chorou copiosamente, como se tivesse perdido a mãe morta.
Deitou a cabeça no degrau de cima, viu o balão no céu que seguia a trajetória do vento e divagou.

EXPLODE CORAÇÃO

Explode balão no céu. Explode coração.
Grito sufocado, na garganta doída.
De um menino apaixonado.
Por uma amada perdida.
Estrelas! Milhões delas!
Eu só queria uma, só a minha.
Desse veludo céu, brocado.
Para acalmar meu coração
Que explode de tristeza...

Lembrando Maria Esmeralda
Vila Ré – São Paulo – 1.966



Ele ainda tinha vivo na memória à lembrança o sabor do beijo mordido da leoa dourada, faminta de amor. O apaixonante êxtase que proporcionara a ela um dia antes da partida. Podia sentir os pontiagudos e pequenos seios da amada a lhe furar o peito e as palavras desconexas de amor, que ela balbuciou, quando ele à levou aos céus, com o simples toque de suas mãos. Presente divino para guardar na memória até o dia de morrer. O balão mais uma vez explode os seus fogos e junto leva o coração menino. A dor do amor é forte no peito. O sereno da noite já umedecia seus cabelos e no primeiro espirro resolveu entrar para casa, era melhor dormir para esquecer a dor. O luar de prata da lua brocava as nuvens seus raios de luz. Novamente o menino divagou sentindo completo abandono de amor.


 

LUA LUAR

Ah! Essa sua magia de encantos.
Que me deixa em prantos! A suspirar.
Traz tua prata para os meus olhos.
Para eu sonhar. Te namorar

Contagia-me com tua solidão calma.
E silenciosa penetras iluminante
Com teus raios na minha alma.
Em soberana beleza, linda e apaixonante.

Queria eu, poder abraçar-te.
Dar-lhe a energia, que meu corpo exala.
Fazer-lhe um carinho na face.
Quando teu afago de prata embala.
Meu coração desolado e apaixonado.

Versos de inverno
Lembrando Maria Esmeralda.
Vila Ré – São Paulo 1.966



Os dias passavam muito rápido para o ocupado Carlinhos, que volta e meia após o trabalho se encontrava com Adélia e Marilam. As duas ficaram muito amigas depois da partida da dourada. E para variar o assunto era sempre Esmeralda.  Ele pedia noticias da amada e tinha como respostas as mesmas evasivas de sempre. Havia escrito duas cartas para ela e nada de resposta. Nem uma linha de novidade. Tudo o que tinha de bom no coração parecia estar se desfazendo, muita era a dor da saudade e pouca a esperança.
Certo dia Adélia lhe contou que a avó da dourada falecera e como consequência, o avô ficara muito abalado e doente. Era melhor que o menino esquecesse a dourada, porque agora é que ela não ia mais voltar mesmo.
Carlinhos disse a amiga.
— Que droga? Cada dia as coisas pioram. E sempre para o meu lado. Oh meu Deus! Será que sou tão ruim assim. É muito castigo.
— Quer saber Adélia? Sê: ela não vem! Eu vou até ela. Veja se você consegue o endereço dela! Pois estou desconfiado que as cartas que escrevo, vão para o lixo. O dia que ela foi embora, pedi ao Luís que lhe entregasse um bilhete, para que ela me desse o endereço de Maringá. Mas o idiota do Flávio atrapalhou tudo!
— Coitado do Luís! Disse Adélia.
--- Aquele dia o Flávio de um soco nele e o jogou no chão.
— Como assim amiga! Que historia é essa.
— Ai Carlinhos! Falei besteira.
— Besta sou eu! Que não sei de nada disso. Agora tu me contas essa história! Exatamente como foi.
— Oh Carlinhos! Eu estava bem pertinho da Esmeralda, quando o Luís chegou e entregou o bilhete para ela, a coitada não teve nem tempo de abrir o papel! O Flávio empurrou-a para dentro do carro, depois pegou o Luís pelo pescoço dando-lhe, um tapa na cara e com o colar que você deu para ela nas mãos, arrebentou e jogou tudo no chão. O bobo do Luís ainda pegou um monte de bolinhas e pôs no bolso.
--- Fiquei com tanta pena do teu amigo e com o coração doído.
Carlinhos bufou de ódio e algumas lágrimas escorreram pelos olhos. Impressionado com o relato da amiga e mais ainda, com a lealdade do amigo Luís, que sofreu sozinho essa dor.
Aborrecido Carlinhos se despediu de Adélia.
No dia da mudança de Luís, Carlinhos estava trabalhando, haviam se despedido na noite anterior e Luís deixara seu endereço com o amigo.
Lembrou-se de ter perguntado ao amigo se não tinha esquecido nada, ou de contar alguma coisa, algum segredo, antes de mudar!
— Oh! Calinhô! Quando chega u dia certo! Vô conta prá ocê um segredo. Foi essa a resposta que teve do Luis..
Pronto agora era o fim mesmo, do bom tempo de criança.
O último nó da infância acabava de desatar na vida do menino poeta. A partida do amigo leal e companheiro, para qualquer encrenca. Doía no peito, parecia à morte de um irmão. Agora trabalhar e procurar esquecer o passado, mas a dúvida era. Será que vai ser tão gostoso viver como foi até três dias antes do Ano Novo!
Só o tempo dirá, mas antes uma pequena vingança rondava a cabeça do menino. Precisava a todo custo, que até se tornou uma questão de honra. Vingar o que Flávio havia feito com Luís. O amigo fora lhe prestar um favor, apanhou sem culpa e sofreu calado. Carlinhos pensou:- Muito homem esse cara! E é, meu grande amigo! Vale a pena arrumar uma encrenca por conta disso.
Por várias noites sondou a chagada de Flávio, quando este vinha do trabalho. Naquela rua que ele conhecia como a palma da mão. À noite, os esconderijos de quintais eram perfeitos. A coisa se deu numa noite de lua mais escura!
O esconderijo era perfeito. Ao passar em frente ao quintal claro da casa de Eduardo que era um dos moleques da rua. Flávio recebeu um baque nas costas e chegou a urrar de dor, virou se para procurar o que fora e nada viu. No segundo grito! Abaixou a cabeça à altura da cintura, pois novamente tomara um segundo baque, uma dor forte e ardida, lhe pegara na região da barriga. Levantou a cabeça e blasfemando palavrões de tudo quanto era jeito. Escutou um sibilar rente ao ouvido. Ai percebeu que a coisa era séria e correu feito louco ladeira abaixo. Ainda pode ouvir mais um pipoco que pegou no portão de ferro da casa de Adélia que era vizinha a sua!
Entrou em sua casa e sumiu porta adentro.
Carlinhos ainda ficou bem uma meia hora no seu esconderijo, para depois sair e ir em direção contraria a sua casa. Deu a volta no quarteirão. Só para passar enfrente a casa a sua amada e ver se via a cara do Flávio no alpendre, que estava com a luz acesa. Não viu nada! Deu-se por satisfeito, sorridente e vingado do vexame que o seu amigo passara! Agora também tinha a contar um segredo para o chefe, quando o encontrasse. Entrou em casa feliz. Mas antes escondeu o estilingue e as bolinhas de gude que carregava no bolso. Se dona Consuelo o visse com um estilingue nas mãos. Com certeza a surra seria feia.  
Os dias longe da amada eram semanas. E as semanas viraram meses e os meses formaram outro ano. E veio o Natal. Muito triste, sem a loirinha dos cabelos de corda, sem o amigo Luís e nem a festa de Natal do seu Olavo, teve graça. Tudo a mesma coisa. Carlinhos lembrou a dança da chuva do ano passado, quando vira pela primeira vez o corpo da amada, debaixo do vestido branco, molhado e colado no corpo.
Lembrara-se do tremor que teve quando ela pegou sua mão e saíram a dançar na chuva. Aquele sorriso tão doce e meigo. Era presente de Natal, para ninguém botar defeito.
Hoje! Hoje nada era encantado, nem os sapatos novos que ganhara de papai Noel o fizeram sorrir.
Viu Adélia e Marilam dançando, embaixo da lona na casa do seu Olavo e notou que a irmã mais nova da amada, estava ficando bem parecida com ela. E pensou:- Tomara que ela não seja tão infeliz quando tiver um namorado. E se eu estiver por perto e o cara não for legal! Boto para correr!