Aos poucos o verde da fazenda caia. Onde haviam árvores frutíferas. Começava a aparecer o marrom avermelhado da terra. Tratores derrubaram tudo aplanado o terreno. Homens com longas fitas métricas, medindo e fincando estacas no chão. Marcando o terreno. Metade da fazenda João Ré, estavam virando lotes ruas e vilas de casas.
Tijolos assentados e equilibrados em paredes, mudavam a paisagem verde dos caquizeiros, pessegueiros, laranjeiras e boa parte do cafezal. Agora a cor era cerâmica e feia. Era o final dos tempos para a família Ré.
Nosso campinho de futebol de mato ralo e verde virou uma avenida de terra batida. O que tinha cheiro de mato, virou pó, que carregado pelo vento, deixava tudo marrom. Rodamoinhos de vento dançavam nas ruas. Um funil de pó enchia nossos olhos de lágrimas. Alguns meninos espirravam, eram alérgicos. Nos dias de chuva crescíamos quase cinco centímetros pelo barro acumulado nas solas dos nossos sapatos.
O pequeno córrego do Sabiá onde haviam muitas nascentes de água potável e de onde pegávamos argila para modelar nossos brinquedos recebeu enormes manilhas e foi canalizado. Tudo aos poucos foi sumindo. Nós éramos crianças, não percebíamos o progresso massacrando nosso pequeno paraíso.
Havia outra enorme área de terra a qual chamávamos de campinho e que as vezes dava lugar a um enfeitado parque de diversões. Que parecia uma árvore de natal com suas luzes coloridas. Muitas vezes não tínhamos o dinheiro para os brinquedos. Era bom demais o passeio e as músicas que tocavam nos altos falantes. Naqueles tempos não eram muitas pessoas que tinham rádios em casa.
Outras vezes vinham circos com elefantes dançarinos, leões, tigres. O macaco era sempre o ladrão e mais engraçado. Eu amava a minha infância pobre e divertida. Adorava o palhaço Violeta com seu enorme e sujo cachorro de pelúcia, que trazia arrastando pelo picadeiro empoeirado.
Sexta feira era o dia da feira na rua Dené. Mulheres faladeiras e fofoqueiras se juntavam com suas sacolas sempre cheias de verduras e legumes. A molecada aproveitava para ganhar frutas e um dinheirinho extra, que era guardado com muita segurança para a matine do domingo no cine Patriarca.
Com nossos carrinhos de mão feitos em casa, aos quais chamávamos de carriolas! Carregávamos as compras das fofoqueiras. Aos domingos pela manhã era o dia que engraxávamos os sapatos dos homens engravatados. Que iam para a missa com seus chapéus pretos e suas famílias a tiracolo ou paravam na padaria para bater papo e tomar um parati (aperitivo).
---- Vai graxa doutor!
Era assim! A padaria do Alípio do lado de fora, ficava lotada de pessoas e engraxates com suas caixas de madeiras coloridas.
No domingo à tarde com nossas melhores roupas fazíamos fila na porta do cinema. Comprávamos doces e cigarros soltos. Eram dois filmes longa. Guerra e faroeste eram os meus preferidos. Às vezes épicos de espadas e romanos. Mas o que me intrigava era um seriado dos intocáveis que nunca acabava. Tinha sempre a continuação na semana seguinte. E para não perder a continuação...
Nas segundas feiras as seis da manhã, estávamos em pé. Amanhecendo com o canto do galo. As sete o sino do grupo escolar iniciava as badaladas, chamando atenção para o horário de entrada. Desde os sete anos íamos sozinhos para escola. As vezes em turmas. Contando bravatas e as novidades dos filmes ou das partidas de futebol que ouvíamos pelo rádio nos domingos.
Ouviram do Ipiranga as margens plácidas. Era assim todos os dias na fila em formação na entrada das aulas. Dona Dináh novinha e bonita a nossa paixão. Já dona Yolanda velhinha e feinha eram nossas professoras.
Não tínhamos bicicletas, nem patinetes. Era brinquedo de crianças ricas. Em compensação éramos os melhores pilotos de formula rolimã. Com nossos lindos carrinhos feitos em casa. Éramos bons engenheiros. Alguns carrinhos tinham molas de bancos de automóveis que conseguíamos nas oficinas. Pistas de corrida nunca faltaram. Inúmeras eram as ladeiras de terra batidas. E com o progresso acabando com os terrenos vazios, jogávamos bola na ruas e ladeiras do nosso cantinho. Nosso Éden.
Corríamos ladeira acima e nunca estávamos cansados. Quebrávamos braços, cortávamos os pés, pois vivíamos descalços. Nunca nos queixamos disso. Engenheiros da NASA com nossas pipas confeccionadas desde as varetas de bambu, até o recorte e colagem da seda. No nosso tempo não tinha a maldade do cerol.
Aos poucos foram chegando canos de ferro para a água encanada. O asfalto tomando conta das principais avenidas. Vieram as guias e calçadas. Os ônibus carros e caminhões, tomaram os espaços dos cavalos, carroças e charretes. Vinha tudo como um passe de mágica. De repente os ônibus levando os engravatados com seus chapéus pretos e sapatos lustrosos para o trabalho.
Nosso encantado mundo foi sendo destruído pelo progresso. A infância foi junta. Amarramos nossos cavalos de sonhos para sempre nos paus da vida. Um mundo novo foi chegando e com ele um tal de rock in roll. As meninas que brincavam de rodas e bonecas. Pulavam cordas na rua e jogavam amarelinha. Agora tinham os olhos diferentes.
Num mágico momento real um dia olhos nos olhos. Um arrepio pelo corpo, o sabor de uma força de desejos. Sai do fundo da sua alma.
Uma menina passando por mim, mais ou menos a mesma idade. Cabelos dourados olhos verdes ou azulados, não consegui decifrar a cor de imediato. Um rosto branco de neve e duas bochechas vermelhas. Parecia uma boneca. Uma paixão adolescente. A boneca me olhou, fiquei espantado! Senti um frio arrepio descer, descer pelas costas e parar no pé da espinha dorsal. Uma sensação que nunca havia sentido antes, estático, vi a boneca sorrir para mim. Me senti uma besta empacada.
Um desafio rock in roll de se sentir um Elvis com seu topete e ser amado por mil garotas. Esnobar todas elas e correr para os braços da mais linda. Aquela que me arrepiou só no olhar. Depois Beatles. Nossos cabelos compridos e a roupas extrovertidas. Tremendões e as meninas as ternurinhas. Passamos de cowboys aventureiros para as lambretas. Após vieram as vitrolas portáteis os radinhos de pilhas. Estavam aposentando as grandes vitrolas Hi-Fi com som de alta fidelidade. Os negros Lps e os compactos simples. Um dia uma fita virou gravador e depois k7.
Nossos grandes balões juninos. Dançávamos além do rock e ie ie ie, quadrilhas! Num bom e gostoso estilo caipira. As garotas com seus vestidos rendados de bolinhas e coloridos. Tranças nos cabelos e chapéus com laços de fita. Tinha a noiva e o noivo o padre e o sacristão. Os garotos com suas palhas desfiadas na cabeça, bigode e barbicha pintados com rolha queimada. Camisas xadrez com remendos, éramos a perfeição da dança ao som gostoso da sanfona do Mané de Cida.
Dávamos vivas para Santo Antonio, São João e São Pedro. Tinha padre casamenteiro, ceguinhos e até banguelas com os dentes pintados.
Ah! Minha Nhá Maria. Que falta me faz! Vamos a quermesse da igreja e depois pular a fogueira. Canjica e batata doce assada na brasa. Gostoso era o quentão e o vinho quente.
Nunca vou esquecer meus chicletes de bola.
Enquanto as namoradas chegavam o homem foi a lua. A copa de setenta deu-nos um tri mundial. Dos sonhos de meninos as emoções do primeiro olhar. Do sentir do amar. Até aí nossas vidas já tinham sido tão boas. Imaginem agora nossos sorrisos encantados com os bailinhos na garagem. Nossas festas americanas. Dançar ao som dos The Animals, dos Incríveis. Renato e seus Blue Caps. Pegar as mãos das garotas e dançar tão colados. Não deixar que nossos passos nos atrapalhassem, sentir o respirar delas como se fosse o nosso. Os suores escorrendo e com os olhos fechados, sonhávamos apaixonados num voo fenomenal das nossas mentes. Com êxtases de ternuras do estar e ficar. E um indescritível sabor de um beijo de amor.
Estamos todos apaixonados. Usamos calças boca de sino, camisas esporte de colarinho e mangas curtas. Somos debutantes dos bailes de formaturas. Do mundo das valsas, das garotas com seus vestidos de baile. Da pompa da formatura do orgulho de ter as mãos o merecido diploma. O canudo da sabedoria nas mãos.
Garotos com trajes pretos e camisas brancas rendadas usávamos gravatas borboletas ou sombra e sapatos de bico fino. Assim terminamos a primeira parte das nossas vidas.
Hoje rememorando estou escrevendo este artigo, num computador ultrapassado que era última linha no ano passado. Vejo o tempo voar. Os jovens modernos no mundo da música, com seus fones de ouvido atravessando ruas e avenidas cheias de transito. Outros passam o dia tricotando magníficos celulares que dominam suas vidas.
Sumiram seus encantos, suas emoções. O amor continua sendo a palavra mais bonita. E eles escrevem continuam tricotando os EU TE AMO das vidas nos celulares. Olhar nos olhos! Só em selfies, um dedão serve para curtir a vida um lábio para te dar um beijo e um coração para dizer que te amo!
Isso é o futuro! Um celular seu amor. Um marido, uma esposa. Dá um para o seu filho não te encher o saco. Criança não precisa de atenção amor ou carinho. Precisa de celular. E que maravilha a sua inteligência. Aprendeu sozinho.
Seu celular. Sua máquina fotográfica sua selfie. Seu relógio do tempo, seu prazer, seu gozo. Seu sentir. Seu êxtase. Que vida maravilhosa a do seu casamento com seu celular. Aprenda com ele!
Não reconheço mais a vida, tenho saudades de mim mesmo, quando eu era o passado.
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