A CARTA DE IGOR E A TRAIÇÃO DE RAFAEL
Carlinhos é até gozado eu pronunciar o teu nome, porque só te chamo de amigo. Eu sinto que não mais vou te ver e queria lhe dizer, que foi você o único amigo, que tive na vida. Embora por pouco tempo., porém aprendi a gostar de você como pessoa.
Sabe amigo não sei por que vim para este mundo. Desde muito pequeno trabalhando e o pouco carinho que tive desde a infância foi da minha mãezinha querida, que espero encontrar em breve. Meu pai era um beberrão como eu só que mal educado, xucro e com miolos de galinha. Eu só fui ser alguém na vida quando entrei para o partido comunista, mas vigiado dia e noite. Namoradas e amores tive muitas em todos os portos do mundo, que meu dinheiro podia comprar. Nestes últimos anos aqui no Brasil me senti feliz e até cantei algumas vezes. Por isso amigo se eu não voltar quero que saiba que amei você como o irmão que nunca tive. E Ligia a menina que adotei como filha desde o dia que salvou minha vida. Vocês são à minha família. Estou desconfiado de traição nesta viagem, mas preciso proteger Ligia disso tudo.
Essa chave dentro do envelope é do meu quarto. No encosto da cama na parte traseira tem uma pequena tabua aparafusada. Retire os parafusos e atrás da tabua colado com fita adesiva, você vai achar meus documentos da Belarus e algum dinheiro. Não sei quanto. Por favor, amigo não me deixe morrer sem dignidade, vou encontrar minha mãezinha e quero estar bem-vestido. Obrigado e boa sorte!
Ao acabar a leitura Carlinhos caiu em mais um choro compulsivo. Era difícil imaginar que o grandão bêbado, tinha um poço de emoções e sabedoria no coração. Um fiel companheiro e amigo, jogado num mundo sem carinho nem alento. Num lugar que nem tinha um punhado de terra para poder dizer, nesta terra eu nasci e aqui eu quero morrer. Num país estranho, numa luta que não era sua. Mas que carregava a lealdade como companheira. Já no quarto Carlinhos tomou um banho e aprontou suas malas para voltar à São Paulo. Foi até o banco e reparou que faltava o repasse dos dois últimos dias de trabalho da estiva. O gerente lhe informou que só cairia esse pagamento no final do dia, devido a atrasos do próprio sindicato dos estivadores. Carlinhos então resolveu que só poderia voltar para sua terra no dia seguinte e foi dali mesmo andar um pouco pela cidade e olhar a praia
O carro dirigido por Rafael já em São Paulo para na Avenida Senador Queiroz perto do Mercado Municipal ele pediu licença a Igor que viajava ao seu lado para ir ao banheiro e comprar cigarros saindo rapidamente do carro. Igor gritou para Ligia sai do carro vamos correr daqui é uma armadilha! A moça rapidamente saiu do carro e já de arma em punho. Algumas vozes gritaram para! Policia e ouviram se dois tiros. Os homens que atiraram rolaram para o chão, fuzilados por Ligia. Outros tiros vieram e a moça foi ao chão. Igor o grandalhão jogou se em cima dela para evitar o pior, mas era tarde ela havia levado um tiro que lhe atingiu à face na altura dos olhos e nem teve tempo de sentir dor. Igor percebendo a morte de sua filha pegou a arma dela que jazia no chão e apontou para os policiais que já estavam a sua volta. Não teve tempo de dar nem um tiro e talvez nem fosse essa a sua intenção. Levou uma rajada de várias armas no corpo e morreu com seu corpo em cima de Ligia!
Já pelas três da tarde Carlinhos retornava ao hotel e no bar pediu uma água gelada, estava cansado, havia andado bastante pela orla da praia. Chico o dono do hotel estava sentado num canto em uma poltrona no saguão, chamou Carlinhos e pediu lhe que escutasse o rádio ligado numa estante do saguão.
Carlinhos com corpo mole e em choque ouviu trêmulo o acontecido. Pediu ao garçom uma bebida forte. No fundo ele já esperava isso só não tivera tempo de preparar o espirito para aquele baque. Chico consolou o rapaz que chorava profundamente e comentou.
— Você escutou a notícia que ela levou dois policiais junto com ela para o cemitério. Menina danada!
— Ouvi sim Chico e agora vão ser enterrados como os heróis que participaram de uma tocaia traiçoeira. Bela merda esses idiotas fizeram. Fim acabou agora só resta à dor para Carlinhos e o problema de Ligia estava resolvido de uma vez por todas. Ela não precisava mais fugir e nem se esconder de ninguém. Estava livre para todo o sempre! Finalmente vai ter sossego e com certeza o Jacques dela esta esperando sua chegada de braços abertos cheio de saudades e amor!
O ônibus subia a serra para o planalto e Carlinhos olhava o verde da mata à margem da rodovia. Isso o lembrava de Esmeralda. Uma doença de amor interminável que o remédio Ligia curou e agora acaba. E não tem mais nem a receita. Essa era a segunda volta para a casa natal que ia com o coração espremido e dilacerado de amor. E assim viajava cantando baixinho e poetando uma homenagem para o amor que partira para sempre.
DITADURA UM CANCER
Ditadura maldita!
Mão de ferro! Puta!
Passando em revista.
Um poder sem conduta.
Matando sem luta.
Assassinos de gente,
Culpada indecente ou inocente. Mata e enterra.
Como pingente.
Cólera câncer que emperra. O Brasil sem justiça! Protestos em praça pública.
Autoridades postiças.
Policia politica, sem rubrica!
Mataram minha guerreira
Na sua infinita causa.
Mas deixaram a raiz, plantada.
Descansando numa pausa. Mulher guerreira de fibra.
Fiel companheira.
Mesmo apagada, sua luz vibra.
Na sua canção e do seu ideal. A certeza fica!
De que dias melhores virão!
São Paulo inverno de 1971
Em São Paulo alugou um daqueles quartos que mais pareciam casa de putas! Guardou a parca bagagem e foi para o IML.
Precisava ver onde estavam os corpos dos dois. Porém tinha que arrumar um jeito de fazer o reconhecimento de Igor, prometera ao amigo que ele não seria enterrado como indigente. Se fizesse o reconhecimento poderia ir preso como membro da guerrilha já que os jornais paulistanos haviam noticiado que os mentores revolucionários da guerrilha em São Paulo haviam sido metralhados a três quadras do comando da Policia Politica que ficava na Rua Tobias Barreto.
Sentou-se num dos bancos e pensou em pagar alguém para fazer o reconhecimento de Igor. Mais eis que o mundo é tão pequeno e no milagre das suas voltas os pontos se reencontram. Quem Carlinhos avista saindo do IML! Sim ele mesmo o amigão de Ligia e motorista do carro Rafael. O bigodinho filho da puta que levara a sua musa à morte.
Levantou-se do banco e em passo apressado colou ao lado de Rafael e com a mão nas costas do bigodinho que se assustou. — Fica calmo Rafael sou eu o Carlinhos. Lembra-se de mim o namorado da Ligia a tua amiguinha guerrilheira, seu filho da puta maldito. Infelizmente não sou eu um homem de fibra para matar ninguém. Mas tenha certeza que eu lhe apertaria o pescoço até a morte. Queria ver teus olhos virando e se arrependendo, implorando por perdão! Seu maldito filho da puta.
Rafael tremia feito uma vara verde e perguntou a Carlinhos se ele ia mata-lo.
— Não Rafael não! Ainda não vou te matar! Mas se me fizer alguns favores posso pensar em te perdoar. Pois você sabe muito bem o que acontece aos traidores antes da morte não sabe! — Esta bem! O que você quer que eu faça! -
— Primeiro quero que vá até lá dentro e faça o reconhecimento do cadáver de Igor.
— Acabei de fazer isso a pedido da policia! Mas sem documentos não pode ser enterrado a não ser como indigente.
— Ótimo Rafael já foi meio caminho andado. Aqui estão os documentos do Igor leve os a eles e nesta sacola estão as roupas a qual ele deve ser enterrado. Você vai acompanhar tudo enquanto te espero sentado aqui neste banco. — Esta bem e se eles desconfiarem!
— Se isso acontecer é porque você vai me entregou e já que você joga dos dois lados. Está vendo aqueles três homens sentados no banco à nossa frente.
— Sim! O que é que têm eles!
— Eram os melhores amigos de Ligia e Igor e não vão titubear em mandar bala em você, urina fora do penico para ver o que te acontece! A mentira louca de Carlinhos deixou o traidor pensativo. Quando saiu de dentro do IML o bigodinho todo cheio de medo não achou Carlinhos no banco e olhava desconfiado para todos os lados, Sofreu outro susto. Carlinhos apareceu do nada lhe cutucando as costas com os dedos.
— Fez a sua parte Rafael!
— Sim o enterro foi marcado para dois dias. Eles já colocaram as roupas nele.
— Então vamos para o banheiro, pois já que cumpriu a sua parte no acordo, agora os homens querem te matar. Mas vou fazer um segundo trato com você seu traidor maldito e filho da puta. Vou dizer a eles que te matei aqui dentro e tenho certeza que acreditaram em mim.
— Qual é o trato desta vez!
— Se não quiser morrer de verdade é melhor você sumir no mundo!
— Mas se eu fizer isso a policia mata meu irmão que está preso. Por isso que sou alcagueta. Para meu irmão ficar vivo.
Carlinhos deu um soco na cara do bigodinho, que balançou, mas não caiu e o chute no saco foi tão forte que Rafael caiu desmaiado. Foi içado como um saco de batatas e posto sentado num daqueles mijadores entupidos pelas pontas de cigarro. O sangue lhe escorria pela roupa e a urina parada no mijador ensopava sua calça e cueca se é que o safado usava.
No dia do enterro Carlinhos ficou de longe vendo o caixão de Igor descer a terra. Ninguém estava presente a não ser os trabalhadores do cemitério um homem de chapéu preto e dois policiais que o escoltavam.
Carlinhos rezou pelo amigo!
— Estou pedindo a Deus que seu caminho seja iluminado. Até você chegar no encontro com a sua mãezinha meu amigo! Descanse nos braços dela e peça lhe que a próxima vida de vocês seja mais carinhosa do que esta que acabou. E os jornais do dia seguinte noticiaram.
“ENTERRADO O RUSSO COMUNISTA”
“O CABEÇA DAS GUERRILHAS ENTERRADO EM COVA RASA”
GOVERNO DA UM TOMBO NA GUERRILHA E ENTERRA O RUSSO COMUNISTA NO CEMITÉRIO DA VILA FORMOSA.
Um dia antes de enterrar Russo ou Igor Carlinhos estivera no enterro de Ligia e também se longe ficou olhando o caixão baixar à sepultura. Como aquela cena doeu nele. Alguns policiais de escolta, dois casais de velhos e uma menina que brincava de correr com uma babá. Aquela era Monic o fruto de um amor entre Ligia e Jacques. Parecia uma criança feliz e Carlinhos chorou por saber que sua guerrilheira deixara uma sementinha na terra onde o poder e a ideologia se faziam presentes e os dois juntos usavam o povo como escudo para os seus anseios.
E o poeta mais uma vez divagou.
GUARDO-TE DENTRO DE MIM
É tudo tão recente amor!
Já perdi as contas de quantas vezes sorri e chorei pensando em você
Inconformado mas obrigado a aceitar a tua partida.
Guardo-te com carinho e afeto dentro de mim.
Desde o momento em que Deus me pediu você emprestada.
Santos – Verão de 2.015
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