29/10/2018

A PROCURA

Vago pelas madrugadas, pelas calçadas das ruas do tempo. 

Pelas ruas de pedras, sebosas e brilhantes, um tom de cinza prata. 

Chumbo.

Coisa feia de se ver. 

O sereno me fustiga molhando meu chapéu e roupa, me deixando com frio.
Em cada esquina, meus olhos te procuram. 

Jogada, dona da calçada, prostituta bêbada...

As vezes me ponho a cantar na rua dos pecados. 

Restos de músicas de vagas lembranças da felicidade.

Tragédia do vício,  trapo, pecando  por um gole. 
Molambo da vida mendiga.
Andarilha dos bares sujos da noite.

Um farrapo sorridente em forma de gente. 

Dormindo em calçadas cuspidas.

25/10/2018

UM PEQUENO AFAGO NA ALMA

Hoje ao me levantar, um desespero, bateu no meu peito. Como se me dissesse para olhar o passado.
Olhei e te achei. Dentro de mim, te sentindo como um pequeno afago na alma. Chorei lembrando teus olhos de querer amor. Teu sorriso de desejos e teu jeito de menina levada.
Do calmo abrigo que sentia no teu abraço. Numa afetuosa satisfação de conforto, de sentir. De sonhar.
Levei-a então a passear comigo pelas ruas do bairro onde moro. Deixei que toda vizinhança nos visse de mãos dadas. Mostrei a todos o meu sorriso de felicidade estampado no rosto. Na volta do passeio fomos para cozinha, juntos preparamos o almoço. Bebemos champanhe com o sabor dos nossos beijos. Dançamos num bailado suave, uma valsa de sonhos.
Após o almoço, sentamo-nos nas cadeiras do quintal da vida assistindo o filme da nossa história de amor. Novamente chorei de felicidade. Então deixei você na cadeira. Quando minha filha me chamou dizendo.
— Vamos pai, estamos atrasados! O psicólogo não espera.

22/10/2018

E VIVA O CRAVO.....E VIVA A ROSA

Era assim que dona Pascoa Pascoetta cantava. Mulher porreta, italiana baixinha. Minha avozinha, minha madrinha dos olhos azuis. Como o céu da minha vida criança.
Sete filhos! Trinta e dois netos. Uma matriarca alegre, mulher feliz. Vibrava muito quando a sua prole se reunia. Aqueles serenos e afetuosos olhos azuis pareciam nos olhar, como se fossemos sonhos. Tinha a fala mansa, nunca a vi levantar a voz para ninguém.
Durante os almoços festivos a macarronada corria solta. Eram quilos e mãos quilos de macarrão. Sua casa pobre era movida por amor e muito vinho se bebia ali.
A alegria contagiante dessa avó querida e o vinho da festa se misturavam. A velha senhora abria a cantoria. Filhos e netos a acompanhavam. Eram músicas da infância dela na Itália. Quando ouvia seus parentes cantar.
Guardou na memória e trouxe para nós o costume. Éramos sua família mafiosa de sangue e amor. A música mais tradicional que ficou marcada, são estas estrofes.
E VIVA O CRAVO......E VIVA A ROSA.....E VIVA A FLOR........

Assim entoavam filhos e netos. Dos mais velhos aos pequeninos. Até hoje a marca da matriarca está no sangue dos Paduan. Hoje quando nos reunimos em festas, nascimentos aniversários e mesmo falecimentos. Entoamos orgulhosos o coro em alto e bom-tom.
E VIVA O CRAVO
E VIVA A ROSA
E VIVA A FLOR DA LARANJEIRA
E VIVA OS DONOS, DESTA CASA
COM TODA SUA, FAMÍLIA INTEIRA.
-- VIVAAAAAAA! ( aplausos ).


Sinto que às vezes parecemos anjos cantando. A marca deixada pela matriz da nossa família. Naquela casa tinha tanto amor que até hoje alimenta nossas almas. Não volta mais esse tempo, resta guarda-lo com saudades e carinho. Até hoje sinto que a presença dela quando encontro meus primos. Rimos e cantamos felizes, conforme nos ensinou minha avozinha a minha madrinha dos olhos azuis.
Conto real dedicado a todos os descendentes da família Paduan e a todos os frutos de sangue que a nossa avó dona Pascoa Pascoetta. Plantou neste mundo.

18/10/2018

O CASTIGO


 A bola veio não sei de onde. Bateu no meu rosto derrubando meus óculos! Não vi quem há chutou e sem a bicicletas, eu nada ia enxergar mesmo. Meus 13 graus de miopia não me permitem. Só vi um borrão de gente, com vós de menino a me pedir desculpas.  
Muito raro hoje em dia esse tipo de educação! Limpei e coloquei os óculos de volta na curva do nariz e nas laterais apoiado acima das bochechas, que eu chamo de barranco dos olhos!
Lembrei-me então das minhas peladas, na rua de terra batida e os pés descalços, fazendo a poeira levantar. Gol só valia de meia dúzia para cima!
Nesse dia a bola subiu numa velocidade grande e ao descer encontrou a zangada professora dona Hermengarda. Mulher porreta de braba. Acostumada a levar o aluno na régua de bambu e no puxão de orelhas. Corri para tentar desviar a redonda da sua trajetória, mas não deu tempo! A mulher teve seu corpo atirado de bunda no chão e a saia levantada. Pela postura do tombo! Fiquei ali embasbacado a olhar a aranha enorme que saia do meio das suas pernas, A molecada correu! Mas eu, fiquei ali firme.
— O que estas olhando! Moleque!
— Desculpa! Professora. Foi sem querer.
— A partir de amanhã, prepara-te, para o castigo menino.
— Sim senhora!
Na manhã seguinte ao final da aula, a professora Hermengarda, depositou sua pesada mala de materiais didáticos, nas minhas mãos.
— A partir de hoje. Após a aula! Tu vais me ajudar a levar, esta mala, na minha casa. De quebra vou castiga-lo, com uma hora de aula, todos os dias. Entendeu moleque atrevido.
— Sim senhora!
— Sua primeira aula na minha casa, vai ser de ciências. O estudo dos aracnídeos, que são as aranhas. Depois passaremos para os moluscos que são as minhocas.
— E você sabia que a nossa língua também é um molusco!
— Não senhora!
— Pois é moleque atrevido, e no final vais aprender a me respeitar. Vais aprender que é só com um pau, que a canoa balança. E vou te avisar mais uma coisa, quando der, você me traga pirulitos! Eu adoro chupar pirulitos, entendeu!
— Sim senhora!






15/10/2018

UMA DOR CHAMADA SAUDADE

Sentado nos degraus da escadaria mira a água da fonte que jorra numa canção, aconchegando-lhe a alma.

Passara por muitas vidas, dentro das vidas de alguns amores. Por todo o caminho que percorreu. Sabia que havia deixado saudades. Mas hoje só sentia o dolorido dessas saudades.

Escrevera no papel da vida seu livro de amores. Primeiro o amor criança. Lembrou com carinho a pequena menina o sol da sua vida. A pequena e risonha Maria Esmeralda. Foi o primeiro raio de pureza e a primeira fagulha de arrepios de amor. Porém hoje ele sabe que ela também esta só. Mas numa vida bem diferente da sua. E pensa :- Deixa ela no canto que conquistou.

Na sua juventude vieram outros amores, outras paixões. Veio Lígia um amor que foi mais uma amizade, uma compreensão um enorme carinho.

Encontrou essa mulher, uma prostituta da vida que lhe deu força e uma razão para continuar vivendo. Tentaram por duas vezes fazer seus corpos se amarem. Tentaram ter tesão, mas o pouco que conseguiram, foram alguns beijos carinhos e afagos. Argumentos para uma boa noite de cama não faltaram. Porem seus corpos não obedeceram aos desejos e o sexo virou piada. O máximo que conseguiram foi dormirem nus e abraçados.

A fonte d água contemplada por ele, continua murmurando e seus olhos parados, lembram como visões hipnóticas o amor que arrasou seu coração. Era tão forte como uma avalanche medonha de desejos. Uma escultural mulher num corpo de vênus. Tinha o costume de deitar a cabeça sobre o corpo dela e com as mãos, fazia uma viagem sobre a pele sedosa e cheirosa da morena. Um desejo forte de amor, tomava sua vida. Tinha a impressão que sua alma saía do corpo e abraçava Mirna.

Foram os mais loucos e explosivos prazeres, que muitas vinham em gozo, só de toca-la ou beija-la. Eram enormes as volúpias e tremores de prazer. Mas, como toda loucura tem fim. Um dia cada um foi para o seu lado. Cada um levou para si suas dores de uma paixão violenta e louca de amor. Cada um levou na bagagem as lágrimas de saudades, os porquês, os certos e errados. Os arrependimentos as tristezas. Mas também guardaram as coisas gostosas, os beijos e afagos, os tesões, os sorrisos e as mãos dadas. Quantas vezes haviam dançado e desfrutado a felicidade nos bailes da vida. Acharam outros amores para curar as feridas. Outras vidas para amar, outras histórias e outros mundos.

A fonte continua murmurando, seus olhos continuam mirando o infinito e agora a saudade machuca seu peito.

Depois de velhos se encontraram, num abraço de quarenta e seis anos de saudades. Os olhos dos dois brilharam tal e qual na adolescência. Não se sentem velhos, seus sorrisos começam no bom dia amor e terminam no boa noite. Abraçados na cama a trocar afagos e carinhos. Seus corpos colados, sonham todas as noites com a esperança de sorrir, por um bom dia nas manhãs que se abrem

Porém hoje! Ele está sozinho sentado nos degraus, ouvindo a fonte a tocar uma valsa da vida. Algumas lágrimas brotam da fonte dos seus olhos pelos sulcos rugosos do seu rosto. Então pensa e diz para ele mesmo.

:— Fique calmo, ela só foi viajar, por alguns dias.

Mas é impossível ter essa calma. Ele se sente só, com o mesmo desamparo de quarenta e seis anos atrás. Quando cada um foi para seu lado. Então dói-lhe o peito, chora a sua alma, como chora a fonte a escorrer sua água murmurante, num lamento de amor.

É terrível sofrer essa saudade, mesmo por alguns dias, então pensa em Deus e lhe pede.

:-- Não há leve emprestada antes de mim. Por favor! Não me deixe nunca mais sentir esta tortura.

 

A.V.P.L.P.  

ACADEMIA VIRTUAL DE POETAS DA LÍNGUA PORTUGUESA

PATR0N0:  ARTHUR DE AZEVEDO

ACADEMICO - CARLOS ALBERTO PADUAN – CADEIRA - 82


11/10/2018

FORTES EMOÇÕES

 


 

Agora já se sentia num final de vida. Adorava escrever suas experiências e posta-las no seu blog. Não era feliz embora morasse no seio de uma família. Já estavam ultrapassadas todas as emoções. Alentos e carinhos muito poucos e mesmo assim por parte dos netos. Parou para pensar onde errara para ter um final tão triste.

Não conseguiu nunca descobrir. Sempre teve um coração mole demais e muitas vezes uma falta de atitudes mais enérgicas. Sempre pensou que deveria manter a família unida. Nunca ligou para sua felicidade. Achou que sua presença era sempre primordial. Infelizmente agora com setenta anos descobrira o quanto tempo perdera na vida. Tentando ajudar a todos.

Sentado no seu canto escrevendo suas linhas, parou para pensar.

:- Deus! O que estou fazendo comigo. Por que decidi nunca ser feliz. Por que meu coração sempre pensou mais que meu cérebro e tomou suas decisões em favor dos que amo. Quem agora quer um velho estorvo como eu.

Foram muitas as lágrimas. Por ter descoberto muito tarde o que precisava. Tinha a necessidade na alma de ser feliz. Como narrador, deste conto também choro junto com o personagem, pois me sinto na alma dele.

Um dia rolando pela internet encontrou uma senhora na mesma idade dele. Há muito procurava. Fora ela sua namorada no passado. Fora aquela criatura que a foto mostrava naquele instante o seu grande e primeiro amor. Tinha ela a cútis morena, os cabelos negros e compridos e um par de olhos sedutores que penetravam sua alma. Era o encanto em forma de humana. Muitas brigas e ciúmes rolaram no tempo de namoro. Às vezes não se entendiam por serem muito jovens e inexperientes. O certo é que deu a lógica do destino cada um para o seu lado.

E assim deixou o amor trancado no peito. Com incerteza ou não de arrebata-lo novamente. Por meses a fio fuçou na página daquele amor. Não queria entrar, sem ter a certeza de que o caminho estava livre. Sentia-se tremendamente apaixonado e esperançoso de revê-la. O tempo passou e seu coração a cada dia palpitava mais forte pela senhora. Agora loira e de cabelos curtos. Mas com as mesmas feições de menina sapeca e levada. O mesmo sorriso gostoso e alegre que sempre fora sua marca.

Um dia tocou no botão da amizade e logo foi correspondido, passaram horas e horas lamentando o tempo perdido. Chorando pela felicidade que se perdera na vida. Meses se conhecendo e indagando porquês. Foram horas de afagos e gestos filmados. Foram carinhos e sorrisos. Foi uma ansiedade de se abraçarem se desejarem. Foram passear num mundo do faz de conta. Viraram novamente crianças. A juventude e os desejos vieram à tona como um furacão. Espalharam a felicidade dos seus corações aos quatro cantos do mundo. Finalmente ele a pediu em casamento. Ela sorridente e feliz aceitou.

No dia do encontro em plena estação rodoviária. Lá estavam os dois velhos. O coração dele a mil a pulsação dela alta. Um à procura do outro. E no meio da multidão que embarcaria para um fim-de-semana prolongado. Eis que o velho apaixonado avista a sua rainha. A mais bela e formosa criatura de amor no meio daquela gente.

Ela veio ao seu encontro com os olhos marejados. Não acreditavam no que estavam vendo. Anos de espera de uma paixão violenta, agora trombam os corpos. Se abraçaram, se beijaram loucamente com sofreguidão. Acompanhando a cena naquele dia tive a impressão que eles nunca haviam se deixado. Pareciam estar na volta de uma longa viagem. Fiquei boquiaberto com o beijo de amor daqueles dois velhos. Chorei junto com eles diante da felicidade que ali se fazia presente. Passando tanto querer e tanta confiança um ao outro. E assim de mãos dadas como jovens enamorados e bonitos de coração, Caminharam para a ala de embarque da tão sonhada lua-de-mel. Aqui me despeço do jovem casal e posso dizer com precisão e conhecimento de causa. Nunca é tarde para ser feliz.

A.V.P.L.P.

ACADEMIA VIRTUAL DE POETAS DA LÍNGUA PORTUGUESA

PATR0N0: ARTHUR DE AZEVEDO

ACADÊMICO - CARLOS ALBERTO PADUAN – CADEIRA – 82

 

 

 

 

 

 

08/10/2018

CAUSOS DE UM CONTADOR DE HISTÓRIAS

Em festa ou reuniões de amigos ou famílias, sempre chama a atenção um contador de causos ou um piadista. Mesmo em velórios essa figura sempre aparece por suas destrezas e habilidades com as palavras. Sempre envolvendo um bom número de espectadores. 
Esse que estou citando era Pedro Junqueiro, compadre e amigo de meu pai. Quando não era história o homem vinha com um violão. Sua habilidade com o instrumento era tão grande que eu tinha certeza de que o violão cantava. 
Dessa história eu nunca esqueci. O homem dedilhava o violão enquanto declamava. Foi na revolução de trinta e dois. Numa noite de lua clara e muito fria na cidade de Silveiras. Estavam entrincheirados Pedro e mais doze revolucionários. O sereno caía gelando a alma e a solidão de aconchego. Caetano era um cantor das boates da noite na capital de São Paulo. Pedro Junqueirol, sentado no buraco, dedilhava uma viola que havia sido esquecida por alguém durante a retirada de um fazendeiro de sua plantação de café. 
Caetano pediu a Pedro que desse um tom em ré maior e de pôs a cantar uma canção de Chiquinha Gonzaga que dizia. 

( Oh, lua branca de fulgores e de encanto 
Se é verdade que ao amor tu dás abrigo 
Vem tirar dos olhos meus o pranto.) 

De repente! Na prata da lua ouve-se uma vós. 
-- Ô paulista revolucionário? Tá com saudade da mulher! 
Um pracinha da trincheira responde. 
Tô sim soldado e você! Não tem saudade da mãe e de casa. 
Caetano acompanhado por Pedro continua sua cantoria. 

( Ai, vem matar essa paixão que anda comigo 
Oh, por quem és desce do céu, oh lua branca 
Essa amargura do meu peito, oh, vem, arranca.) 

-- Porque você não baixa sua arma soldado! Vem lutar do nosso lado! Diz o pracinha
-- Não posso! Fiz um juramento à Pátria. 
-- Pátria de quem! A nossa Pátria é São Paulo soldado! 

( Dá-me o luar de tua compaixão 
Oh, vem, por Deus, iluminar meu coração 
E quantas vezes lá no céu me aparecias.) 

-- Não pracinha! Jurei pelo nosso Brasil! 
-- Brasil sem constituição soldado. A lei é de Getúlio que quer se nosso dono. Vamos derrubar ele soldado! 
-- Não posso! Tenho comando para obedecer! 

( A brilhar em noite calma e constelada 
E em tua luz então me surpreendias 
Ajoelhado junto aos pés da minha amada.) 

Pracinha? O teu amigo canta bem. Fez a gente chorar na nossa trincheira. 
É ele quem acalma as nossas noites de frio e de medo soldado! Se você voltar para sua casa dá um abraço na sua mãe por mim. 
Boa sorte! 
-- Boa sorte prá você também pracinha! E me perdoa meu amigo! 
-- Tenta voltar vivo para a sua mulher! 

( E ela a chorar, a soluçar, cheia de pejo 
Vinha em seus lábios me ofertar um doce beijo 
Ela partiu, me abandonou assim 
Ó, lua branca, por quem és, tem dó de mim.) 

No final da música. Um enorme clarão e vários estrondos caíram sobre a trincheira dos paulistas revolucionários. Pedro jogou o corpo ficando deitado no fundo da trincheira. Caetano apavorado jogou-se sobre ele e as bombas tomaram conta da noite. Tendo uma lua branca como testemunha. 
Fez-se o silêncio de morte. Amanheceu! Pedro levantou-se devagar tirando de suas costas Caetano o cantor! Ao colocá-lo deitado de lado Pedro só viu a metade do corpo do cantor. A trincheira era um grande buraco com várias poças de sangue. 

A.V.P.L.P.  

ACADEMIA VIRTUAL DE POETAS DA LÍNGUA PORTUGUESA

PATR0N0:  ARTHUR DE AZEVEDO

ACADÊMICO - CARLOS ALBERTO PADUAN – CADEIRA - 82


 

05/10/2018

DUAS VIDAS E UM DESTINO

Hoje, quando vi você chorar doeu em mim.

Tuas lágrimas rolaram pelo teu alvo rosto, como gotas de orvalho. Pareciam perolas a escorrer.

Chorastes se culpando pelo nosso passado. Pelo que fomos. Dois jovens sem juízo. Sem planos e com muita energia de amor. Não estávamos preparados para ser pai e mãe. Quis o destino que nosso rebento partisse ainda no teu ventre. Protegendo-o de amarguras e sofrimentos de ter pais separados.

Talvez fosse esse o elo que nos uniria para sempre. Mas a vida se encarregou disso. Fomos cada um para um lado. Levando em nossas mochilas o peso dos dissabores. Das mágoas, nossas teimosias, nossas brigas. Nossos rancores. Trancamos nosso amor dentro do peito. Na lembrança, guardamos nossos beijos, risos e afagos. Nas saudades os abraços, nosso sentir. Nossos odores, nossos momentos. O tempo transformou nossa beleza em sépia. Como nossas fotos que se tornaram antigas e rotas. Passamos por outras famílias. Vieram outros namoros. Outros sonhos, outros rebentos. Fomos felizes por educação por respeito, por obrigação familiar. Fomos nobres e feras defendendo o que construímos. Fomos a vida imposta pelo destino e carimbada, pelo cartório do tempo. Formamos nossos filhos, afagamos e sorrimos para nossos netos. Fomos amigos e inimigos do tempo.

Porém hoje te vi chorar. Mesmo passados cinquenta anos, doeu! Você se culpando por um elo que o tempo se encarregou de nos tirar.

Hoje sinto que o destino também nos protegeu, nos poupou e ensinou que o amor trancado nos nossos peitos, amadureceu. Agora é o nosso tempo e a nossa vez de sermos felizes. Não choro mais agora, por te procurar na vida. Não lamento mais o que não deu certo no passado. Mas está dando certo no presente. O destino quer fechar nosso elo neste tempo. Por isso nos uniu novamente. Estávamos mortos nesta vida. Quando nossos olhos se encontraram. Sentimos um novo encanto, uma nova vida. Viramos dois velhos jovens e sonhadores. Abrimos os nossos corações para um novo dia. Não somos mais a sépia do tempo à ferrugem que rói e pontilha o papel, desbotando e amarelando. Hoje podemos partir desta vida, tranquilos e sabedores do que estava escrito no papel da vida. Que teríamos que formar nossas famílias. Encontrarmo-nos novamente e morrermos felizes. Para voltarmos juntos na próxima vida ao seio familiar que preparamos para nos receber

 A.V.P.L.P.  

ACADEMIA VIRTUAL DE POETAS DA LÍNGUA PORTUGUESA

PATRON0:  ARTHUR DE AZEVEDO

ACADÊMICO - CARLOS ALBERTO PADUAN – CADEIRA - 82

 

 

02/10/2018

DESCENDO A LADEIRA

No final da ladeira. No antigo casarão da rua Sete. Morava meu amor. Minha doce e trigueira Elizeth. Linda mulata, magra bonita e altiva. Seu andar deixava espanto por onde passava. Às vezes descendo a ladeira sorria para mim com encanto.

Filha de mulata com branco tinha. A cútis na cor de um delicioso bombom de chocolate. Vivia embalada em singelos e gentis vestidos brancos. Deixando à mostra as torneadas pernas um pouco acima dos joelhos. Seu andar gingado e elegante deixava a rapaziada de olhos arregalados.

Me provocava mostrando seus dentes brancos, num malicioso sorriso. De mulher criança. De desejos e sonhos que pareciam estar na flor da pele. Eu ficava desconcertado e muitas vezes ofegante com tamanha maravilha de mulher. Desconectavam-se meus passos, meu corpo formigava, meu coração acelerava. Um arrepio me percorria o corpo, quando eu pensava em abraça-la e beija-la.

Um dia um moço do bairro chique subiu a ladeira da rua Sete num conversível branco. Parou no portão do velho casarão. Depois veio ladeira abaixo buzinando escandalosamente e carregando a minha Elizeth. O meu amor sublime veio sorrindo no banco, com seu vestido branco. Foi seu último sorriso para mim.

Foi a última vez que vi a filha do alemão com a mulata! A minha Elizeth dos olhos verdes!

Hoje o casarão está cheio de mato e arruinado. Nele habitam fantasmas. Nele morou meu sonho de rapaz menino. Hoje eu velho e sentado na mesma calçada da ladeira. Ainda sonho com Elizeth descendo a ladeira. Minha musa dos olhos verdes. Do antigo casarão da rua Sete.

A.V.P.L.P.  

ACADEMIA VIRTUAL DE POETAS DA LÍNGUA PORTUGUESA

PATR0N0:  ARTHUR DE AZEVEDO

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