Concebi a história de um menino, suas aventuras e recordações da sua infância. Dei os primeiros passos na escrita e devagarinho fui tomando gosto pela coisa e, catando milho no teclado do computador, cá estou eu, trazendo a história do menino que sou eu mesmo.
De repente o telefone toca. Paro de escrever. Pronto, já perdi minha concentração e atendo a pessoa com pouco-caso, querendo logo despachar. Era alguém me perguntando se eu não queria ajudar o Lar dos Velhos Desamparados. Respondi que também era um...
Volto para o computador e... caramba, perdi o fio da meada! Desligo a máquina e, aborrecido, vou tomar um café. Fico aos golinhos, sorvendo o caldo ralo que minha mulher faz, e vou pensando. Na minha cabeça entra de novo a história do menino e volto correndo para o computador. Começo a me deliciar com os beijos da minha namoradinha, seu sorriso puro que enchia meu peito de paixão.
-- Carlinhos eu te amo. Diz ela.
-- Eu também te amo, minha linda.
Paro de escrever e me ponho a sonhar acordado. Lembro-me dos deliciosos momentos e dos beijos escondidos que encantavam minha vida. De repente, a voz da minha mulher retumba no espaço:
-– Carliiinhos! Desperto, volto ao normal.
-– Atende ao telefone! Estou no banho.
-– Droga! Saio do paraíso e entro no inferno.
- – Alô!
-– Quem esta lá?
-– Sou eu, dona Mafalda, o Carlos.
Dona Mafalda é uma portuguesa, nossa vizinha, pergunta pela minha mulher.
– Ela está no banho, dona Mafalda. Liga mais tarde.
– Ora, pois, seu Carlinhos. Obrigada!
– Carliiinhos! Quem era?
– Não sei! Caiu a ligação. Respondo para minha mulher.
– Então apaga o fogo do feijão!
Já estava apagado há uma década. Que tristeza, bem na hora do beijo da minha namoradinha ter que atender dona Mafalda e apagar o fogo apagado do feijão. Chega de escrever livro por agora.
Tirei a tarde para dar um passeio na praia. O sol estava ameno e caminhar me faz bem. Logo, volto a pensar no meu livro. Muitos personagens e fatos que nele estão escritos colhi nas ruas e nos meus passeios pela orla. Jeitos e trejeitos de pessoas que fico a observar. Foi assim que construí o personagem do “seu Paulo”, meu patrão. Velhinho e ranzinza, ele usa um chapéu de palha com uma fita preta à volta e está sempre resmungando com os funcionários. Eu sou a vítima constante das lamúrias, mandos e desmandos dele. Que velhinho chato!
Achei um banco vazio e me sentei para rascunhar. Do meu observatório, contemplo em um casal o espelho do que sinto naquele momento. Aos beijos e com tamanha sensualidade que achei que iriam fazer amor ali mesmo no banco em frente ao meu. Anoto tudo e me lembro da primeira namorada. Ela é minha personagem no livro. Recordo dos seus olhos verdes e novamente entro em devaneio.
– Senhor, meu senhor!
Acordei, olhei para o lado. Uma moça me perguntava as horas. Respondi com má vontade. Coitada, ela não teve culpa; mas logo agora, me tirar do melhor do sonho em troca da hora! Aborrecido, levantei, guardei minhas anotações no bolso e voltei para casa. Há dias em que fica muito difícil encontrar um canto de paz. Certa vez, quase desisti de escrever meu livro, mas não podia abandonar meus personagens.
Já tinha passado muitos momentos de felicidade, choro e outros tantos aborrecimentos enquanto escrevia. Às vezes acabo me achando meio autista por ter este mundo à parte, só meu. Porém, vou equilibrando um sonho de um lado, um sacrifício do outro. Às vezes penso até em mudar meu nome, pois esse “Carliiinhos” que ouço sempre consegue me tirar do sério. Parece um estigma que começou na infância com minha mãe, depois passou para os primos, até para a primeira namorada, depois para minha mulher e agora também está no livro; isso sem contar a dona Mafalda no telefone.
Gosto de ir para a cozinha e fazer umas comidinhas com o meu tempero suave, porque minha mulher carrega no alho e eu como arroz com alho, feijão com alho, bife com alho e só falta o alho na sobremesa. Então, abro uma cervejinha esperta, fico cozinhando e ao mesmo tempo lembrando ou refletindo, sobre acontecimentos ou ideias para colocar no livro. Paro e fico sonhando com os olhos abertos. Até que...
– Carliiinhos! Tá fazendo o quê aí parado?
– Nada não, mulher!
– Quantas cervejas tu já tomou, Carliiinhos?
– Ainda não abri nenhuma. Sempre que abro levo um copo para você e isso há mais de quarenta anos. Você nunca reparou nisso, né?
– Não! Eu, hein! Tu tá delirando Carliiinhos?
Entrei na fase de correção do livro, mudando algumas palavras, trocando vírgulas e acertando pontos aqui e acolá. Roubando uns beijinhos extras da namoradinha e diminuindo um pouco os resmungos do meu patrão, seu Paulo. Fazendo isso me sinto feliz: vivi momentos deliciosos na companhia dos personagens que criei. Reler os diálogos que saíram dos meus pensamentos livres do dia a dia, sem censuras, sem ninguém tirando a minha liberdade de devanear quando eu bem entendia e sem ninguém para me chamar de “Carliiinhos”!
Hoje, tento não chorar de emoção ao ver meu sonho concretizado em algumas folhas de papel encadernadas. Ao percorrê-las alguns poderão chorar, outros rir, achar chato ou alegre; não importa. Livros expressam sentimentos fortes, um mundo criado para ajudar a preencher espaços na vida das pessoas. Sejam elas criadoras da obra ou leitoras.
Eu confesso que gostaria de estar morando dentro do meu livro com os personagens que criei e sem me importar com o mundo aqui fora. Para compensar o ranzinza do seu Paulo, meu patrão, lá dentro teria a minha namoradinha, lindinha cheirosinha, beijoqueira e gostosinha sempre me chamando.
– Carliiinhos!
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