24/05/2018

A NEGA MARIA


Ali estava o negrinho Odorico de frente à sua mãe, a velha Maria, que lhe pergunta:
— É isso que você quer menino?
Odorico assentiu com a cabeça. Maria colocou a pequena trouxa com algumas peças de roupa, uns pedaços de pão e rapadura nas mãos do filho.
As lágrimas do pequeno eram de alegria e a mesmo tempo de tristeza... Saíram porta afora do velho trapiche adaptado para moradia que ainda cheirava a cachaça. Com o dedo em riste, mostrou o caminho para o filho.
A voz da velha era doída, mas com a sabedoria de quem aprendera com os Orixás, disse ao menino:

— Vai menino! Aquele é teu caminho e só volte no dia em que achar o teu sonho. E quando encontrá-lo, venha dividir comigo seu prêmio, por eu ter confiado em você!

Odorico partiu com o vento zunindo nas costas. No fim da trilha, olhou para trás à procura da mãe. Não viu nada.


Maria voltou rapidamente para dentro do trapiche, não quis dar o último aceno ao filho, para não desencorajá-lo. O desespero estava saindo do coração pela boca. Foi para o pé do pequeno congá, pedir a Iansã que olhasse pelo menino, agora sem a proteção dela. Pediu também a Xangô justiça por onde seu pequeno passasse.
O dia terminou na tristeza. Um rio de lágrimas, cascata salgada, rolava pelo rosto negro de Maria. Pela penumbra da fraca luz do lampião as lágrimas davam a impressão de prata derretendo.

O punhal da vida estava a poucos centímetros do seu coração, bastava um pequeno impulso para que a negra sucumbisse. Nos sonhos das noites Maria percebia os Orixás a rodear sua cabeça e lhe dar esperança. Diziam a ela que olhavam pelo menino desde o dia da partida. Mas o rumo da vida dele era guiado pelos ensinamentos do dia a dia que ela havia tinha mostrado.  As escolhas do certo e do errado, o respeito, a lealdade e, principalmente, o amor.

As angústias da negra perduraram longos anos.
Todas as dores, os sofrimentos e a desesperança enchiam o coração da velha negra de calafrios; a crença em seus Orixás se extinguindo a cada dia. O corpo já não lhe obedecia pelo desânimo pelas doenças inventadas pela mente.
Tinha arriscado a vida do menino longe da proteção e do amor dela; mandara o seu menino para a morte. Agora, nas poucas vezes que conversava com os Orixás, era para pedir que levassem logo o seu corpo embora. “Por que castigá-la mais, por que alongar os sofrimentos de uma velha que só tentou ver o filho vencer na vida?”

O trapiche de cipó e barro já estava aos pedaços com grandes buracos. As paredes já não continham mais o vento e a umidade, estavam em frangalhos como o coração dela.
Às tardes, antes do sol se por atrás da linha do mundo, a Negra Maria sentava-se à porta do trapiche numa tora de árvore muito lisa e gasta pelo tempo.

Os olhos se perdiam no final da trilha, que levara embora o seu menino; o vento zunindo acompanhava mais um dia de desgosto. Maria só via, onde a vista quase não alcançava, um pontinho preto. Os olhos lacrimejados de esfregar com as mãos viram o ponto preto crescer; a visão vinha envolta na poeira vermelha da trilha, cada vez maior. Já dava para ouvir o som de um automóvel a roncar soberano no silêncio daquele fim de mundo.

O carro não era mais miragem e sim uma novidade. Maria só conhecera aquilo que estava à sua frente quando fora por duas ou três vezes de sua vida à cidade.
Espantada e assombrada com aquela maquina preta e de vidros escuros a roncar bem na frente da porta do trapiche, a negra levantou-se do toco banco amedrontada.
A porta traseira do automóvel se abriu e uma pequena princesa negra, com os cabelos cacheados, desceu.

Maria pensou: “Será que os Orixás mandaram Ibeji me buscar?”

A princesa menina respondeu ao pensamento da velha negra com um sorriso lindo e logo foi dizendo:

— Se você for à Negra Maria, então você é a minha avó!

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Vocabulário
Congá – Altar
Orixás – Deuses Africanos
Xangô – Orixá da justiça
Iansã – Orixá dos ventos e tempestades
Ibeji – Orixá criança
Trapiche – Pequeno engenho de cana de açúcar ou de azeitonas.

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